O Theatro do Becco
Italo Wolff
“Os viajantes europeus do século XIX aludem a uma
regressão sociocultural, onde os brancos
assimilaram os costumes dos selvagens, habitam choupanas,
não usam o sal, não vestem roupas, não circula moeda…
Tão grande era a pobreza das populações que se duvidou
ter havido um período anterior com outras características.”
(PALACÍN, 1975, p.46)
O goiano se esquecia do que havia sido. Os aventureiros abandonaram o estado tão logo as minas começaram a dar sinais de cansaço. Os comerciantes deixaram cidades inteiras naufragadas no sertão. A riqueza se foi tão rápido quanto veio e apenas restava dela a morte das atividades nativas, a ignorância ancestral: restrições legais para coibir a agropecuária; estradas degeneradas; o preconceito contra os peões¹.
Suas origens começavam a tornar-se tão remotas quanto seu destino. Nos dias de semana a população regredia dos arraiais ao roçado, sem esperanças ou sobressaltos. Segundo Saint Hilaire, o viajante-naturalista francês, “seria inútil que os colonos plantassem milho, feijão e arroz em maior quantidade do que a necessária para alimentar suas famílias, pois, exceção feita das épocas de escassez – o que ocorreu quando eu passei por lá – esses produtos não encontram comprador²”.
Nas noites escuras da capital (a iluminação pública a querosene só seria instalada em 1848) os moradores se reuniam nas praças para declamações; a Serra Dourada estampada contra a noite como uma muralha para um mundo abandonado, de antigos propósitos esquecidos. Nas casas dos vilaboenses ricos se ouvia saraus, músicas e tertúlias. “Um bisavô meu, inclusive, mandou tirar uma parede da casa para que sua sala ficasse maior, servindo como palco. O que mais você poderia imaginar de cultura? Nessa área setentrional, isolada do resto do Brasil. Era comum essa reunião nas casas das pessoas; nossa vocação teatral vem daí” diz Antônio Carlos de Bastos Costa Campos, coordenador das obras do Programa de Aceleração do Crescimento Cidades Históricas na Cidade de Goiás.
O primeiro teatro do Estado de Goiás só seria inaugurado em 1 de junho de 1857: o Teatro São Joaquim, construído pelo comerciante Manuel das Chagas Artiaga. De sua inauguração até 1872, tudo que se sabe a respeito é: “bela casa à margem do Rio Vermelho onde se encontra hoje o Hotel Municipal. Era dotado de certo conforto, bom palco, camarotes especiais e ali se levavam peças dramáticas, interpretadas por artistas da terra ou companhias vindas do Rio e São Paulo.”³ Sabe-se isso e que o teatro funcionava no Beco da Rua da Lapa.
Beco da minha terra…
Amo tua paisagem triste, ausente e suja.
Teu ar sombrio. Tua velha umidade andrajosa.
Teu lodo negro, esverdeado, escorregadio.
E a réstia de sol que ao meio-dia desce, fugidia,
e semeia polmes dourados no teu lixo pobre,
calçando de ouro a sandália velha,
jogada no teu monturo.
Becos de Goiás
CORA CORALINA
In Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais, 1965
As passagens escuras espremiam-se por detrás das ruas principais, onde serviçais e animais acessavam os fundos das casas dos ricos e regatos de esgoto corriam junto aos muros. Ali reinaram de pés descalços os pobres, os loucos e as prostitutas⁴. Haveriam várias tentativas de mudar o Teatro São Joaquim do beco para “um local apropriado, o que não acontece com o antigo edifício que jaz ali encravado no fundo de um becco”⁵.
Em 1872, na administração de Antônio Cícero de Assis, o teatro foi adquirido pelo governo e sua manutenção destinada à Sociedade Recreativa de Goiás. Após uma grande reforma, foi realizada a reinauguração do teatro no dia 7 de setembro deste mesmo ano – a primeira ocasião em que suas atividades foram bem descritas.
Às sete e meia da noite os pobres se aglomeraram na viela desnivelada para ver os figurões da cidade. Fraque, luvas, cartolas e bengala; as senhoras carregando jóias preciosas, aigrettes de brilhantes e anéis custosos. Da população de oito mil pessoas da capital apenas cento e vinte faziam parte da Sociedade Recreativa e podiam frequentar o teatro. Agora adornado de mica moscovita, o frontispício deixava a luz externa entrar no saguão de entrada, onde doces eram vendidos em tabuleiros de madeira e couro.
O público atravessou o saguão de entrada para um vasto salão de piso de madeira onde bancos estavam dispostos para os sócios, mas antes de se sentar, levaram as mulheres de suas famílias aos camarotes. O chefe de polícia e o presidente do Estado sentaram-se em torrinhas elevadas junto às paredes, enfeitadas com dossel carmesim e franjas douradas. Às oito horas, as cortinas foram abertas, revelando uma efígie do imperador cercada de flores e ornamentos. Cantou-se o hino da independência, que na época era o hino nacional, e o presidente da província, Cícero de Assis, proferiu um discurso declarando inaugurado o teatro.
Por anos, as noites do São Joaquim foram os principais acontecimentos da cultura goiana. Lá, poetas locais recitaram seus poemas inéditos nos intervalos entre os atos; dramaturgos e atores locais se formaram pela experiência naquele palco; ideias dos grandes centros vieram para a província e até mesmo uma tradição de crítica teatral nos jornais se formou.
As damas é que tiveram nos seus lencinhos de mão verdadeiros peccados de atrapalhação.
Elysa tocou piano sem deixar o lenço,
o que prejudicou á toda a possibilidade de illusão e á verossimilhança;
a dama da comedia lavava o lenço à boca muito á miúdo,
e, o que é mais grave, quando fallava.
Parecia estar soffrendo dores nos dentes da frente.
Não fasemos estas notas com animo de censura, não; desejamos que sejão recebidas e
consideradas como o que na verdade são: simples e amigáveis advertências para correcção.
(A Tribuna Livre, agosto de 1879).
As décadas de 1870 e 1880, entretanto, podem ter sido as mais importantes social e culturalmente. Este período foi o apogeu do Teatro São Joaquim, quando o interesse da população e reconhecimento público pela função do teatro foi maior do que nunca. Associações em prol da libertação dos escravos por vias legais organizavam festas, quermesses, espetáculos musicais e teatrais com intuito de esclarecer a opinião pública e arrecadar donativos para o Fundo de Emancipação dos escravos. Os eventos, que ficaram conhecidos como Noites Abolicionistas, foram importantes também por serem as primeiras vezes em Goiás que mulheres puderam participar de apresentações teatrais. Antes disso as personagens femininas eram representadas por homens adolescentes sem barba, enquanto no Rio de Janeiro e São Paulo já haviam atrizes.
Porém, os ideais de progresso do positivismo chegaram à Goiás condicionados às crises econômicas. A não contribuição dos sócios com a mensalidade levou a Sociedade Recreativa à falência. Sete outras companhias viriam a substituí-la até o fim do São Joaquim. O Teatro sobreviveu e realizou suas reformas com doações de almas generosas… em troca de elogios feitos nos jornais. “Devemos em conta sempre a má vontade de almas pequenas, que, a semelhança dos noctivagos, temem a luz e procurarão sempre as trevas (…) porquanto parece que alguns, por espirirto de oposição a tudo quando é progresso, não comprehenderão bem a influencia benéfica que o theatro exerce na educação do povo” ⁶.
Em 1908, no Rio de Janeiro, o major Domingos Gomes d’Almeida era um ex-seminarista-militar-fazendeiro-comerciante-industrial e atual empreendedor. Entusiasta das tecnologias e convicto de que a ciência nos levaria à iluminação, como era característico de tantos homens de seu tempo, o Major Domingos encheu um carro de boi com motores, alternadores, e projetores. Pela Estrada Real, até Minas Gerais, e depois pelo Caminho de Goiás, percorreu 1596 quilômetros com sua preciosa carga trepidando nas estradas semi arruinadas e assando sob o sol do cerrado. Após três meses de viagem, chegou a sua cidade natal, Vila Boa.
O Major Domingos, fundando a empresa Recreio Goyano, arrendou do Governo o prédio do Teatro São Joaquim e instalou nele seu Cinematographo Pathé Fréres e as fitas que adquirira da empresa francesa. No dia 13 de maio de 1909, foi divulgado o início das atividades do Cinema Goyano, “às 8 horas da noite, com um programa explendido e magnifico. Variadas fitas comicas, dramaticas e phantasticas. As Exmas. familias que quiseram poderão mandar cadeira para as galerias”⁷.
Como não havia bilheteria, os espectadores compraram seus bilhetes nas Pharmacias Domingos e nas casas dos senhores Felippe Batista e Francisco de Bastos Bichara Saddi. Desta vez, o público não encontrou no Teatro São Joaquim um palco iluminado, mas uma tela molhada. A água dava brilho às imagens, que iam ficando opacas novamente porque a lâmpada forte do projetor secava a lona branca. Então, no intervalo necessário para trocar os rolos no projetor, um funcionário do teatro borrifava água novamente e os filmes compostos de três à cinco partes continuavam. A Orquestra da Polícia Militar de Goiás fornecia o fundo musical, sentando-se abaixo das imagens mudas.
O público só pode ter deixado o Cineteatro exultante com o otimismo eufórico e sentimento de modernidade que perduraria na Cidade de Goiás até a década de trinta. A chegada do cinema foi concomitante à do carro e da energia elétrica, mas de certa forma ainda mais importante pelo conteúdo das fitas:
Programação do Cinema Goyano em 1909:
Vida publica de N. S. Jesus Christo, Recepção do General Roca no Rio de Janeiro,
O filho prodigo (colorizada), Romanza de Amor, O trovador (Colorizada),
A flauta mágica (A pedido), As proesas de D. Quixote (500 metros de fita),
Uma fita interessante, Santos Dumont, O enforcado,
Chegada partida de trens de ferro, Dança
(NEVES, p. 70, 2014)
Os efeitos especiais como a colorização e truques de edição das fitas de ficção; o dia-a-dia dos grandes centros nas fitas descritivas; e as inovações tecnológicas nos documentários ampliaram o imaginário dos interioranos brasileiros apenas 14 anos após Louis Lumière ter feito a primeira exibição cinematográfica em Paris.
O Cineteatro São Joaquim nesta data já contava com cinquenta e dois anos e começava a tornar-se um prédio arcaico. Até 1917 foi narrado nos jornais a história do embate entre o Major Domingos e o Estado por razões de arrendamentos negados, aluguéis aumentados e reformas solicitadas mas nunca cumpridas. Em 1917, o major construiu seu próprio prédio para abrigar o Cinema Goyano, ao lado do Quartel do 20, e o Cineteatro São Joaquim voltou a ser apenas um Teatro numa era de empolgação com a imagem.
O interesse pelo teatro era agora menor e o estado de conservação do São Joaquim pior do que nunca. Apenas eventualmente um ou outro grupo de amadores abnegados se apresentava, eles mesmos realizando a limpeza e reformas indispensáveis para a encenação de sua peça; o conserto de cadeiras e remedo de cortinas sendo noticiados como atos de civismo. Em 1922, após uma enchente, o prédio foi interditado pela ameaça de desabamento, restaurado, liberado para uso e interditado mais algumas vezes, até sua ruína em 1928 – data da inevitável demolição.
O Hotel Municipal foi construído onde estava o São Joaquim e nunca mais se pensou em teatro em Vila Boa. Por sete décadas o antigo prédio foi conhecido apenas por leitores de notícias velhas e por aqueles que ouviam histórias da época em que se usava roupas francesas para frequentar peças brasileiras e se aspirava viver numa realidade que nada tinha a ver com a savana que nos cerca. No início dos anos 90, o Estado adquiriu o prédio do antigo Cine Anhanguera, que estava desativado e sendo usado como depósito de grãos. O prédio era da década de sessenta, em estilo art dèco, e ficava a poucos metros do antigo teatro. Foi reformado e batizado de Cineteatro São Joaquim.
Em 2017, foi requalificado, adequando-se ao estilo colonial dos prédios vizinhos e tornando-se mais parecido com o São Joaquim original. Este prédio leva o nome e evoca a memória do primeiro teatro do Estado de Goiás, das primeiras manifestações progressistas que tivemos, de um dos primeiros cinemas do Brasil; evoca o edifício ao qual nossa cultura teatral é tributária e sobre o qual não se escreve o suficiente; sobre o qual se fala tão pouco que grande parte dos goianos nem sabe que não fica no mesmo lugar do Teatro São Joaquim original. A evocação de 160 anos que pretende nos proteger do mesmo esquecimento milenar que pressionava o sertanejo antigo.
¹ “A característica básica do século em questão foi a transição da economia extrativa mineral para a agropecuária, os esforços continuados do império em estabelecer tal economia acabaram se esbarrando, nas restrições legais que foram impostas inicialmente, como forma de coibir tais atividades, a exemplo da taxação que recaía sobre os agricultores, e também em outros fatores de ordem econômica, como a inexistência de um sistema de escoamento adequado, o que inviabilizava as exportações pelo alto custo gerado, e cultural, onde predominava o preconceito contra as atividades agropastoris, já que a profissão de minerador gerava status social na época.”
SILVA , L. F. A Mineração em Goiás e o desenvolvimento do estado. Monografia (bacharelado em economia) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, p. 16, 2010
² SAINT-HILAIRE, Auguste de.Viagem à província de Goiás.Belo Horizonte/São Paulo:Itatiaia/Edusp, 1975.
³FERREIRA, J. C. Presidentes e Governadores de Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG. 1980
⁴“A cidade de Goiás era constituída por uma sociedade em que o mundo oficial era ditado pelas práticas conservadoras, das famílias que residiam nos largos e ruas principais, que elegeram os becos como locais dos segregados. O confinamento nos becos, nos hospitais e asilos ou a morte, formas eficazes de evitar, silenciar e esconder os indesejáveis”.
BRITO, Clóvis Carvalho. Das cantigas do beco: cidade e sociedade de Cora Coralina. Sociedade e Cultura: revista de ciências sociais, vol. 10, núm. 1, janeiro-junho, p. 115-129, Universidade Federal de Goiás, 2007.
⁵ Goyaz, jornal, nº 457, página 2-3 (microfilme cx.23), 6 de julho 1894
⁶Goyaz, jornal, n° 454, página 2, 16 de junho 1894.
⁷Anúncio disponível no Blog O Vilaboense <http://ovilaboense.blogspot.com.br/2009/05/100-anos-do-cinema-em- goias.html>.
BENFICA, Eduardo; LEÃO, Beto. Goiás no século do cinema. Goiânia: Kelps, 1996.
BRETAS, G. F. História da Instrução Pública em Goiás. Goiânia: CEGRAF/UFG, 1991.
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à Colônia. São Paulo: Editora da Unesp, 1998.
COUTO, Goyaz do. Memórias e Belezas da Cidade de Goiás. Conferência pronunciada na Assembléia Legislativa do Estado de Goiás, em 1 de Agosto de 1956. Cidade de Goiás, 1958.
IPEH-BC. Periódico A Tribuna Livre: órgão do Club Liberal de Goyaz. Goiás. (s.n.) semanal. Ago/1879.
NEVES, A. C. P. Sociabilidade nas salas de cinema da cidade de Goiás (1909 – 1934). Dissertação de Mestrado em História – Universidade Federal de Uberlândia, 2014
PALACÍN, Luís e MORAES, Maria Augusta Sant’Anna de. História de Goiás (1722-1972) Goiânia, Imprensa da UFG, 1975.
SANT’ANNA, Thiago. “Noites Abolicionistas”: as mulheres encenam o teatro e abusam do piano na Cidade de Goiás (1870-1888). OPSIS – Revista do NIESC, v. 6, n. 1, p. 68-78, 2010.
Italo Wolff é jornalista e redator da Trilha Comunicação
Confira abaixo o documentário produzido pela Trilha Comunicação para a Secretaria de Educação, Cultura e Esporte de Goiás e
mergulhe um pouco mais na história da cultura goiana.