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Uma guerra que estamos vencendo

 

                       Italo Wolff

“A gente não tem motivo para ficar triste. No dia 8 de abril vamos comemorar o Dia Mundial do Combate ao Câncer e eu acho que é uma guerra que estamos vencendo: a cada ano mais pessoas são curadas. Mas ainda é uma doença muito prevalente na população; uma a cada três pessoas terão um tumor e vão ter que ser tratadas”, disse o médico Alexandre Meneghini na área administrativa do hospital Araújo Jorge. Diretor clínico do único hospital de Goiás que faz o tratamento global para câncer pelo SUS, Meneghini disse que seu desafio é aliviar a imensa demanda e ainda melhorar a eficiência em tempos de crise. “Agora mesmo estava em uma reunião para pensar as adaptações que temos que fazer para melhorar o atendimento ao paciente”, disse ele, apontando para a sala de onde saíra.

O câncer não é uma doença, mas sim um grupo de doenças genéticas que se caracteriza pela multiplicação rápida e desenfreada de células. Esse crescimento, causado por mutações genéticas, cria problemas no órgão onde se originou. As células cancerosas podem ainda se multiplicar para além de suas fronteiras normais e invadir outros tecidos e órgãos – processo chamado de metástase. Quando um câncer de estômago se espalha para o esôfago, por exemplo, ele continua sendo chamado de câncer de estômago. Ao microscópio as células deste novo tumor se parecem com células estomacais e suas características, como velocidade de crescimento e mutações genéticas, são equivalentes.

Isso é importante porque diferentes dados genéticos implicam tratamentos diferentes. Existem mais de duzentos tipos de câncer. Para cada órgão do corpo há mais de um subtipo de tumor e cada um deles tem um tratamento específico. Os tratamentos também mudam em função do estágio em que a doença se encontra. Tradicionalmente os estágios (ou estádios) são numerados de zero a quatro de acordo com o grau de alastramento do tumor.

No dia 3 de fevereiro, a Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou que 8.8 milhões de pessoas morreram de câncer em 2015, dois terços delas em países em desenvolvimento. Esse grupo de países – do qual o Brasil faz parte – tem mais dificuldade de prover serviços de diagnóstico e testes laboratoriais, que são pontos chave para a detecção precoce da doença. Visando diminuir a mortalidade das doenças não contagiosas em 25% até 2025, a OMS lançou um guia para o diagnóstico precoce.

Em seu guia, a OMS aconselhou países em desenvolvimento a priorizar três ações básicas, de baixo custo, mas com um grande impacto. Primeiro, conscientizar a população a respeito dos sintomas e encorajá-la a procurar um médico quando estes são percebidos; em segundo, investir em serviços e profissionais de saúde atualizados para diagnosticar e encaminhar os pacientes aos centros de referência; por último, vencer barreiras geográficas e socioculturais para que as pessoas vivendo com câncer consigam alcançar o tratamento.

Rejane Faria Ribeiro-Rotta, odontóloga e pesquisadora da Universidade Federal de Goiás (UFG), afirmou sobre a importância do diagnóstico precoce do câncer de boca: “ele se manifesta na grande maioria das vezes como uma lesão corriqueira – uma úlcera que não cicatriza, um pequeno caroço nas diferentes partes da boca, e o paciente descarta-o como uma coisa comum. O dentista, por sua vez, tem uma capacitação muito voltada para o dente e acaba deixando de avaliar os outros tecidos da boca. Então, mais de 80% dos casos de câncer de boca chegam nos hospitais de referência em estadiamento três ou quatro. O tratamento nesta etapa é de alto custo financeiro e pessoal. Como a face e a boca desempenham funções sociais importantes, o paciente fica estigmatizado”.

A OMS avaliou que em 2010 o custo global do câncer, somando-se os valores do tratamento, prevenção e custo humano, atingiu 1.16 trilhões de dólares. Esse impacto seria consideravelmente menor caso o diagnóstico precoce fosse mais comum. Não apenas os tratamentos seriam mais simples e baratos, mas os pacientes também teriam suas vidas menos afetadas, podendo continuar a trabalhar e sustentar suas famílias. Um estudo¹ mostrou que um grupo que iniciou o tratamento para câncer de mama em menos de três meses desde o surgimento da doença apresentou uma taxa de sobrevivência 7% maior do que outro grupo que demonstrou um atraso de três a seis meses. Essa porcentagem foi similar aos benefícios alcançados pela quimioterapia.

Os trabalhos de Alexandre Meneghini e Rejane Ribeiro-Rotta estão intimamente relacionados. Meneghini divide seu tempo entre a direção do hospital e cirurgias de cabeça e pescoço. Essa especialidade compreende um grupo heterogêneo de cânceres em uma área, portanto, ele explica sobre o diagnóstico: “geralmente os pacientes chegam ao cirurgião de cabeça e pescoço encaminhados por oftalmologistas, otorrinolaringologistas, endocrinologistas. O tipo de tumor mais frequente é o de boca, então já recebemos os pacientes diagnosticados pelo odontólogo”.

Com o intuito de antecipar o diagnóstico do câncer de boca, Rejane Faria Ribeiro-Rotta conduziu um projeto para avaliar um novo equipamento. O princípio da fluorescência óptica já era comumente utilizado para a facilitar a identificação do melanoma, mas aparelhos específicos para a boca foram desenvolvidos e estão em fase de testes. “Ainda não podemos falar em efetividade pois falta amostragem suficiente, mas o resultado que tivemos em nosso estudo é de que os aparelhos de autofluorescência podem ser importantes coadjuvantes na inspeção visual”, afirmou ela.

O equipamento de autofluorescência funciona emitindo luz de diferentes comprimentos de onda que interage e estimula a fluorescência de proteínas presentes nos tecidos. Quando alteradas em caso de câncer as proteínas perdem a fluorescência e o profissional da saúde pode notar a neoplasia sob a luz azul-violeta. Em fases iniciais, pequenas alterações que passariam despercebidas pelo profissional da saúde ficam evidentes.

O Centro Goiano de Doenças da Boca, dentro da Faculdade de Odontologia da UFG, havia adquirido dois aparelhos que aguardavam testes. Ribeiro-Rotta incluiu o teste dos equipamentos ao projeto de Matriciamento e Rastreamento do Câncer de Boca em Goiás, de autoria do Ministério Público. Ao longo de cinco semanas, a população de risco foi chamada por meio da mídia – fumantes, pessoas que com mais de quarenta anos, com histórico de DSTs ou que se expusessem ao sol por mais de duas horas por dia. Duzentas pessoas foram examinadas e, nesse conjunto, foram encontradas 34 com lesões potencialmente malignas.

“Os profissionais que fizeram parte do projeto piloto hoje são desconfiadores mais refinados”, ressaltou a pesquisadora, lembrando que novos equipamentos são apenas uma parte da rede necessária para antecipar o diagnóstico. “Há uma cadeia importante que deve ser cumprida para que o câncer seja percebido mais cedo. Precisamos de odontólogos instruídos na atenção primária: não necessariamente que saibam diagnosticar câncer, mas que tenham intimidade com a normalidade dos tecidos da boca. Profissionais que saibam que há um centro de referência regional a que podem recorrer”.

Neste ponto, as ideias de Ribeiro-Rotta coadunam com as de Oleg Chestnov, Vice Diretor Geral de doenças não transmissíveis da OMS. Ele escreve que o diagnóstico precoce se inicia no atendimento primário do paciente. Após algum sintoma ser notado, é requerido do agente de saúde no ponto inicial da rede que ele tenha suspeição, habilidades e recursos para realizar o diagnóstico. Para alguns tumores, como o de mama e próstata, já existe uma rotina de exames especializados. Mas quando se fala em diagnóstico precoce de forma geral para a população brasileira, isso se equivale a investimentos no atendimento primário do paciente: postos de saúde, medicina familiar e – no caso do câncer de boca – dentistas.

Desde a realização do estudo conduzido por Ribeiro-Rotta outras pesquisas foram publicadas atestando a utilidade da fluorescência óptica como um coadjuvante ao exame bucal². Para decidir se equipamentos como este serão incorporados aos sistemas públicos, a Rede Brasileira de Avaliação de Tecnologias em Saúde (Rebrats) julga a custo-efetividade através de um cálculo que leva em conta segurança, eficácia, custos, equidade e impactos éticos, culturais e ambientais.

Meneghini afirmou que os avanços tecnológicos são notáveis. “Apesar das dificuldades, temos vencido a guerra graças à ciência. Os avanços têm chegado: hoje o Hospital Araújo Jorge faz um tratamento bastante moderno e pelo SUS. Usamos as melhores tecnologias para tratamento. Ainda não fazemos pesquisa genética, mas temos um laboratório de oncologenética e com o tempo ele será utilizado. Eu acho que em Goiânia as pessoas têm o privilégio de ter um tratamento bastante moderno pelo SUS”.

Esses fatores, aliados à crise nos hospitais, fazem com que o Araújo Jorge seja procurado por pacientes de estados vizinhos. Entretanto: setenta por cento dos 170 leitos vem do interior. “Por ser o único hospital que faz o tratamento global para câncer pelo SUS, eles são encaminhados para cá. Graças a um trabalho intenso de recuperação econômica, conseguimos sobreviver mais ou menos a essa crise. Mas nós temos nosso limite: nosso hospital é de médio porte. Então precisamos expandir e aumentar o atendimento – que está cada vez mais urgente” disse Meneghini.

Quando questionado se havia algo que facilitaria seu trabalho caso as pessoas soubessem, ele respondeu que gostaria de mais apoio da população para as reivindicações da Associação de Combate ao Câncer de Goiânia frente os gestores públicos. “A população tem que entender que esse hospital tem se esforçado para cumprir o papel de tratar todos os pacientes possíveis, mas ele tem um limite. Se a crise continuar piorando, teremos de parar alguns procedimentos. Já temos um projeto consistente de ampliação do Araújo Jorge, mas precisamos de financiamento. É um projeto para modernizar o hospital (que tem uma estrutura antiga; mais de 50 anos) e assim dobrar a capacidade operacional. Esse é um projeto que a população deveria saber que existe e cobrar, pois basta só um pouco de apoio governamental ou de instituições privadas”³.

Perspectiva Projeto Futuro 1 Perspectiva Projeto Futuro

 

 

 

1 – Guia: http://www.who.int/cancer/publications/cancer_early_diagnosis/en/

2 – Richards MA, Westcombe AM, Love SB, Littlejohns P, Ramirez AJ. Influence of delay on survival in patients with breast cancer: a systematic review. Lancet. 1999;353(9159):1119–26. Diponível https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10209974

3 – Hérica Adad Ricci; Sebastião Pratavieira; Aldo Brugnera Júnior; Vanderlei Salvador Bagnato; Cristina Kurachi. Ampliando a visão bucal com fluorescência óptica.

Disponível em: http://revodonto.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0004-52762013000200008&lng=es&nrm=iso&tlng=pt

 

Italo Wolff é jornalista e redator da Trilha Comunicação